quinta-feira, 22 de março de 2007

Não sou mártir nem herói

O silêncio que invade a cabine do velho jipe Land Rover é interrompido pelo estrondo forte de uma explosão. Em segundos, o tejadilho desaparece, os vidros estilhaçam e um fumo espesso toma conta do interior da viatura. Segue-se uma saraivada de metralhadoras. João Coelho Baptista, padre Missionário da Consolata (IMC), atira-se para fora do carro. Tem ferimentos de bala nas duas pernas, duas costelas partidas e um tímpano estoirado pelo ruído do rebentamento. A seu lado, quatro dos acompanhantes - o Salomão, o Aleixo, o Victor e o Artur - agonizam de dor.

João Baptista espreita por debaixo do veículo e vê os agressores, do outro lado da estrada em terra batida. Estão a menos de cinco metros. Em desespero, ajoelha-se, levanta os braços e grita: «Sou padre, sou o padre missionário». As armas calam-se. Os soldados, afetos à Renamo, pedem desculpa e desaparecem no mato, sem tocar nos bens do sacerdote. Horas depois, regressam a mando dos superiores e levam o missionário para um acampamento improvisado, para tratar os ferimentos. Para trás deixam os cadáveres de quatro homens que o acompanhavam.

O ataque ocorreu a 1 de março de 1992, na estrada que liga Massangulo a Mandimba, diocese de Lichinga, e está contado pelo sobrevivente, num registo quase fotográfico, no livro «Sangue que a terra bebeu». O padre português, natural de São Julião do Tojal, Loures, esteve 30 dias em cativeiro, até ser entregue à Cruz Vermelha e ao representante da Delegação Apostólica do Maputo, como se fosse um prisioneiro de guerra.

Passaram 20 anos e João Baptista ainda guarda a pequena bolsa preta do breviário, furada pelas balas, a camisola castanha, esburacada pela explosão, as calças rasgadas e alguns invólucros recolhidos no local da tragédia. Mas esquiva-se a mais conversas sobre o acontecimento. E explica porquê, com a humildade desarmante que o caracteriza: «Eu não sou mártir nem herói».

O padre João, hoje com 79 anos, entrou no seminário da Consolata, em Fátima, a 18 de outubro de 1951. «Queria ser padre e celebrar missa». Muito antes de entrar no seminário, «já sonhava que em África havia de abrir escolas». O sonho concretizou-se. «Sozinho, sem casa, sem carro e sem Igreja», no final da década de 60 do século passado, foi enviado para Belém e Mandimba, em Moçambique, para abrir novas paróquias, prestar assistência religiosa a dois quarteis militares, lecionar na escola primária e acompanhar 16 escolas-capelas rurais. Em dois anos, conseguiu erguer a residência, uma capela e deixar as fundações de uma nova Igreja. Regressou, 18 anos depois, para uma nova empreitada em Mitande, Mandimba, Massangulo e Mwita. Agora, continua a sua missão em Fátima.
http://www.fatimamissionaria.pt/artigo.php?cod=22813&sec=73